quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

A hard rain's a-gonna fall - Parte 1 -

Eu acendo o cigarro e olho pela vitrine do restaurante, são oito da manhã de mais uma maldita noite mal dormida, a garçonete de meia-idade me serve mais uma xícara de café enquanto sorri com os dentes tortos sujos de nicotina, e eu finjo não notar olhando pelo vidro empoeirado com o letreiro EARL'S até que ela vá embora; bom, pelo menos eu ainda tenho bacon.
Eu tomo um gole da xícara de café e olho de novo a primeira página do jornal, "MAIS TRÊS SE MATAM APÓS ENTERRAR ENTE QUERIDO.", é essa maldita matéria que tem me feito dormir mal já há quatro noites... não que eu dormisse bem antes, mas de qualquer jeito... Tem algo acontecendo aqui, eu sei, chame de instinto, de sexto sentido, da porra que você quiser, eu chamo de "uma sensação de que algum bastardo está se metendo onde não devia", e eu tenho andado a noite pelo cemitério onde os fulanos e suas famílias de kamikazes foram enterrados tentando descobrir algo já há quase uma semana e nada, nessas horas queria que os classificados anunciassem esse tipo de merda: "Fantasma de Estuprador atacando na rua 34", ou qualquer droga desse tipo...
- ...nhor? Senhor?
Um garoto interrompe minha linha de pensamentos, bom, tanto faz, eu só ia ficar amaldiçoando algo ou alguém mesmo.
- O que é garoto? - Pergunto tirando os olhos do jornal.
Ele me olha apreensivo, parece desconcertado, tem uma garota da mesma idade olhando pra ele do balcão, namorados, devem ter vindo tomar café juntos, ele abaixa os olhos e respira fundo antes de dizer:
- Senhor, podia apagar o cigarro por favor? Eu e minha namorada somos contra o mal que o cigarro faz, e o senhor está nos tornando fumantes passivos.
- Isso não é um cigarro garoto, é só uma ilusão, assim como todo esse restaurante, agora, se você fechar os olhos e se concentrar e sair correndo por aquela porta enquanto conta até trinta, eu garanto que todas as ilusões terão ido embora. - eu sorrio - Que tal se você tentasse isso?
O garoto se vira e sai, provavelmente pensando muitos xingamentos de mim, "inglês maldito!" e variantes, bom, tanto faz, acho que a única pessoa que se incomoda quando xingam os ingleses é a rainha, e eu não sou rico o suficiente, velho o suficiente ou inglês o suficiente, portanto eu não sou a rainha, na verdade eu também não gosto muito de ingleses.
Eu me viro e volto a ler aquela manchete, quando meu celular toca:
- Jack? Está aí? Jack?
É o reverendo Simmons, ele nunca é uma pessoa divertida, e menos ainda quando está falando ao telefone.
- Estou, reverendo, manda ver. - falo enquanto apago o cigarro.
- Tenho algo pra você Jack, algo que você vai gostar.- Ele faz uma pausa dramática, esses reverendos e padres nunca perdem a chance de fazer drama, até numa conversa de telefone. - Um dos familiares suicidas se deu mal...
- Ele morreu! Grande piada padre, precisava me ligar para contar ela, podia ter guardado até eu passar aí um dia desses. - respondo impaciente.
- Não, Russel, seu cretino, ele não conseguiu se matar ele está no Hospital de Misericórdia, quarto 32 se quiser saber, já que estava investigando resolvi avisá-lo, mas isso não me cheira bem, tome cuidado Jack.
- Você fala como se não me conhecesse, reverendo. - digo sorrindo.
- Pelo contrário, falo assim porque te conheço Jack. - ele desliga.
Levanto e saio do restaurante, enquanto acendo outro cigarro um mendigo se aproxima de mim:
- Me dá um trocado pra poder comprar alguma bebida e me esquentar irmão, o tempo parece que vai virar e esfriar logo logo.
Olho para o céu dando uma tragada no meu cigarro depois me viro para o mendigo: Ele costumava ser um comerciante que vivia bem, mas um incêndio lhe tomou tudo e ele nunca conseguiu se reerguer. Tiro uma nota de cinco dólares do bolso e lhe entrego dizendo:
- Tome, beba uma dose em meu nome, sim?
Ele se afasta enquanto o olho indo embora, todo mundo odeia viver na decadência, começo a andar em direção ao hospital quando vejo meu reflexo numa poça d'água no chão... Bom, nem todo mundo...
- É parece que vai chover... - murmuro.

Chego ao Hospital de Misericórdia e apago o cigarro, aqui um pouco de ironia não vai ajudar quando alguém reclamar do fumo. Tiro minha garrafa do bolso interno do sobretudo e dou um gole longo, sempre detestei hospitais, guardo a garrafa e entro.
Logo na entrada, sou surpreendido por alguns enfermeiros correndo com uma maca em que uma mulher de aproximadamente trinta anos se contorce convulsivamente, nos bancos de espera um garoto de no máximo dez anos segura o braço esquerdo quebrado, e uma ponta de osso sai da sua pele no meio do antebraço, passando pelo corredor térreo eu vejo um senhor de cinquenta anos vomitar sangue no chão ao lado da maca... Acho que é por isso que o nome do hospital fica só do lado de fora.
Chegando ao quarto 32, bato na porta, abro antes que alguém possa me proibir, e entro com um sorriso pacificador.
- Olá senhor, sou o Dr. Jack Russel, psicólogo do hospital, vim aqui ver como o senhor está.
- Jack Russel? O outro doutor tinha um nome diferente. - ele diz surpreso.
- Eu entendo, mas eu sou designado para casos mais dramáticos, e meu colega achou por bem me indicar para tratá-lo. - puxei um cigarro - Não se importa de eu fumar não é?
- Ah... Eu realmente acho que o senhor não deveria... - ele começa.
- Que bom. - acendo o cigarro e o olho nos olhos. - Então, por que decidiu puxar a tomada mais cedo?
- O senhor não vai acreditar se eu contar...
- Me teste, estou ganhando pra isso mesmo. - "besteira, mas ele não precisa saber."
- Bom após o enterro, durante umas duas semanas, meu tio aparecia pra mim, me amaldiçoando e me xingando.
- E o que ele dizia exatamente?
O homem me olhou nos olhos para ver se eu acredito, ele próprio não parece acreditar no que diz, mas eu acredito, como não poderia? Esse tipo de merda me segue a minha vida inteira, acho que é como dizem, todos temos um fardo pra carregar, e o meu é cheio de malditas agulhas.
O homem balbucia, engasga e enfim diz:
- Ele dizia que eu o havia condenado, que sua alma agora ia vagar por minha causa, e por isso ele ia se vingar de mim; Ele me atormentava todas as noites, não me deixava dormir, se lembrava de cada lembrança que eu tenho e gostaria de esquecer, eu comecei a perder a cabeça, e depois de tanto tempo, decidi puxar a tomada, como você disse...
- Que você o havia condenado? O que ele quis dizer? - "Isso não está me cheirando bem".
- Não sei, ele dizia que sua alma não teria descanso...
Apaguei o cigarro na cadeira e me levantei, olhei para ele e disse:
- Entendo, bom, o que quer que seu tio apareça para lhe dizer, não ouça, ao invés disso reze até que ele se vá, Deus vai te proteger, se você não morreu quando tentou o suicídio, é porque Deus ainda tem um objetivo para você. - Dei meu melhor sorriso de aeromoça.
Enquanto caminhava pela avenida procurando um táxi comecei a pensar. Deus não está nem aí para aquele imbecil, na verdade, Ele não está nem aí pra nada, o suicídio deu errado por que ele errou a quantidadede pílulas, e não porque alguém lá em cima gosta dele, mas ele não precisa saber disso, na verdade... acho que ninguém precisaria saber disso... incluindo eu mesmo.
- Táxi!
Subo no táxi e dou as coordenadas, acho que sei do que se trata, mas nunca se sabe, melhor conferir com um expert no ramo de mortes e descanso eterno, depois eu volto e vejo se o rapaz ainda está em um pedaço só...

A chuva piorou, já faz três dias que ela cai e para, cai e para, mas não dá um trégua decente. Aperto o sobretudo contra o corpo, saio do táxi e caminho até a igreja.
Entro na igreja, acendo um cigarro e dou um longo gole na garrafa de bolso, acho que esse é o único amigo que está sempre comigo, o bom e velho Johnnie, caminho pela nave quando o padre me ve e vem até mim.
- Fumando e bebendo em plena casa de Deus, Jack! - ele faz um gesto apontando o imenso cucifixo atrás do altar.
- Eu perguntei, ele não se importa. - respondo dando de ombros.
- O que você quer saber, Russel? - ele pergunta balançando a cabeça negativamente.
- Engraçado você achar que venho aqui por que quero alguma coisa.
- Você sempre quer alguma coisa, Jack, então o que é. - ele diz em tom acusador, me olhando com o olhar cansado.
- É isso, você não ganha mais cartão de natal. - "como se eu mandasse algum... ou recebesse." - Mas já que você mencionou, tem uma coisinha sim.
Eu conto pra ele o que o quase suicida me contou, quando termino o padre está boquiaberto.
- E então? - pergunto.
- E-eu não sei o que dizer, isso parece com a idéia que você teve mesmo, realmente tudo se encaixa, não consigo pensar numa teoria melhor que a sua.
- E como eu resolvo isso?
Ele olha para baixo, depois para cima, depois pra mim, algo me diz que não vou gostar da resposta.
- Acho que você deve fazer o que não foi feito direito, acho que se você fizer isso, pode dar certo, talvez...
- Talvez? É isso que você tem pra mim padre? Um "talvez"?
- É melhor do que nada, Jack. - ele sorri desconcertado. - Vou dar uma pesquisada e prometo que te ligo com informações melhores.
- Certo. - digo me virando para ir embora.
- Antes de ir Jack, não gostaria de doar algo para os menos afortunados? - o padre pergunta indicando uma pequena caixa ao lado da porta.
- Claro padre. - sorrio - Aqui está. - jogo quatro cigarros dentro da caixa.
- Cigarros, Jack!!!???
- É melhor do que nada padre. - me viro e vou embora pela porta sorrindo, nunca vi um padre xingar tanto assim.

Bom, táxi de volta pra casa e ainda não avancei nem da primeira base, espero que a bola rebatida demore pra voltar, porque essa merda parece complicada, se eles mantivessem registros desse tipo de coisa, ficaria mais facil, mas acho que vou ter que fazer do jeito antigo... Perguntando por aí...

- O-o-o o que quer, Russel? - o homem pequenino e careca, de olhos injetados e pele clara me olha tremendo dos pés à cabeça, não o culpo, nossos encontros não costumam ser dos mais amigáveis, pego ele pelo colarinho da jaqueta e digo com um sorriso:
- Relaxe Axyl, só quero conversar, não vai nem me oferecer uma cadeira?
Sorrio de novo enquanto ele corre alvoroçado pela espelunca que ele chama de loja, procurando uma cadeira, quando ele finalmente encontra uma, me sento e acendo um cigarro enquanto ele me olha inquisitivo.
- Por que você veio aqui? Estou tentando cuidar de um negócio, Russel. - ele faz um gesto abrangendo a pequena loja.
- O lícito ou o ilícito, Axyl? - pergunto sem olhá-lo. - Certo, vou falar de uma vez, quero informações, e você é o bastardozinho mais escorregadio que eu conheço, então vim falar com você.
- E o que eu ganho nisso? - ele aparentemente já perdeu o medo. Demônios são seres imprestáveis mesmo, mas é só empurrar um pouco.
- Ora, está bem. - dou de ombros - aqui, pegue. - estendo-lhe uma folha de pergaminho, com uma escrita ininteligível.
- Um pergaminho, Russel? Suas ofertas já foram melhores.
- Crise econômica, meu amigo, e se você lesse com atenção, perceberia que é uma página de um grimório.
- Jack, isso é sério?
- Sérissimo, meu amigo infernal, é só me dar as informações e isso é seu.
- E o que você quer saber? - ele se sentou, com os olhos mostrando um ávido interesse.
Tiro uma lista de nomes do bolso do sobretudo, e jogo para ele.
- Quero saber quem foi o padre que executou a extrema unção nessas pessoas, e preciso saber disso o mais rápido possível.
- Certo, isso não vai ser difícil...
Me levanto e vou caminhando até a porta, quando escuto:
- Fantasmas do passado, Russel?
Mostro o dedo médio sem me virar e digo:
- Vá para o inferno, Axyl. - e saio pela porta, é hora de correr algumas bases e tentar uma nova rebatida.

Um comentário:

Endiara Cruz disse...

Gostei. Poste mais coisas, gosto de lê-las.